Olhar para trás e redescobrir o presente. Essa pode ser uma frase que resume o pensamento de Nikolaus Harnoncourt em "compreensão da música e formação musical" no seu livro “O Discurso dos Sons”. Após realizar uma reflexão sobre a interpretação da música histórica, sente-se intrigado ao “ver o entusiasmo com que os antigos apreciavam suas composições contemporâneas, era como se estas fossem sempre descobertas inéditas” (HARNONCOURT, 1998: 17). O autor debruça-se sobre a atual compreensão da música e a formação musical. A partir daí, passa a usar o Barroco como argumento para a sua tese, citando-o como um dos períodos musicais mais ricos e de dimensões históricas consideráveis, o qual todos os músicos do século XX devem se voltar a fim de “compreender a música como um todo, como uma linguagem viva e capaz de transformar o homem”.
Apontando um colapso total da cultura, o autor tece intensas críticas aos que utilizam a música como simples ornamentação, subproduto cultural com função de preencher as horas vazias. Dá enfoque especial a música popular, por nos remeter a aspectos de uma antiga compreensão musical, como a unidade poesia-canto; a relação ouvinte-artísta; e a própria música-tempo onde faz parte integrante do presente. “Talvez com a ajuda da música popular possamos ter uma ideia do que a música antigamente representava na vida das pessoas” (HARNONCOURT, 1998: 25).
A revolução da educação musical ocorreu tendo o conservatório como modelo de educação político-musical; foi um dos responsáveis por substituir um sistema onde transitavam as figuras de mestre e aprendiz. Este sistema possibilitava a formação de músicos de acordo com a especialidade de cada mestre. “Tratava-se, antes de mais nada, da técnica musical: composição e instrumento; a esta acrescentando-se a retórica, a fim de se tornar a música eloqüente” (HARNONCOURT, 1998: 29). Ainda que um tanto dúbio, Harnoncourt critica também o intérprete de música antiga, frisando que, em primeiro lugar, ele deve descobrir o “modo de expressão musical de cada época no instrumento com o qual ele consegue exprimir-se” (HARNONCOURT, 1998: 124), antes de usar instrumentos originais.
Aplica-se à música de hoje métodos de épocas e estilos antigos. “Aparentemente, sem qualquer reflexão, são utilizados na educação musical atual princípios teóricos que há cento e oitenta anos faziam sentido, mas que, hoje em dia, não se compreendem mais” (HARNONCOURT, 1998: 31). Além do que, como sabemos a formação do ouvinte não se restringe somente ao que ele aprende na escola ou a concertos que porventura ele venha a assistir; percebe-se antes disso que o gosto é moldado pelas programações radiofônicas. “Os sons que, cotidianamente, chegam ao ouvinte, formam-no musicalmente, e, sem que ele o perceba, imprimem o valor e o significado – positivo ou negativo – da música” (HARNONCOURT, 1998: 31).
O estágio ridiculamente primitivo de percepção a qual Harnoncourt se refere em sua crítica também pode ser encontrado em Adorno, em a regressão da audição. A opinião pública passa a regular o comportamento valorativo do indivíduo, oferecendo-lhe supostamente direitos de participar de um grupo social; grosso modo a música atua como máquina agenciadora, e nesse interlúdio passa a ser padronizada. Um clichê repertoriado onde se convencionou além do código musical, toda uma gama de recursos técnicos, caráter estético e formas sonoras. Todavia, vale ressaltar que nada disso é estanque, intocável, imutável. Tudo está predisposto a passar por mudanças, incluindo gêneros musicais, técnicas e modos estereotipados de pensamento criativo.
Podemos citar o trabalho de Abraham A. Moles em O Kitsch, a arte da felicidade (1975), onde ele desenvolve uma tipologia semântico-integradora desse fenômeno sócio-econômico onde a estética é demarcada por um estilo sem estilo. “O Kitsch está ligado à arte de maneira indissociável, assim como o falso liga-se ao autêntico” (MOLES, 1975: 10). Portanto, ainda latente, o Kitsch ultrapassa alguns suportes, constituindo-se como um estado de espírito que, eventualmente, se cristaliza nos objetos e produtos. Os meios de comunicação de massa oferecem uma música/produto a um público que só deseja ouvir aquilo que já conhece. E isso segundo Harnoncourt faz da música um objeto a ser consumido e não valorado como arte. Ainda para Moles a música de entretenimento é ao mesmo tempo suporte e alimento do cotidiano, sendo a canção sua propagadora fiel. Todavia, segundo ele,
[...] a mensagem semântica tem pouca importância em relação à mensagem estética que se constitui a especificidade das sonoridades, e nele as formas melódicas são essenciais: uma Gestalt bem fechada, uma melodia sem dissonâncias muitas vezes enraizada na musica popular, mas retrabalhada para o consumo da sociedade de massas por intermédio do arranjador que cria o filtro de amor. (MOLES, 1975: 126)
Hoje, em plena era da pós-produção, muitos artistas amadores produzem constantemente atendendo o gosto do público, para isso se aproveitam da linguagem sonora sócio-cultural já adquirida, o que acaba ampliando sua difusão.
Harnoncourt propõe no decorrer do texto um questionamento interessante.
Por que há atualmente, de um lado, uma música popular que desempenha na vida cultural um papel tão importante, mas nenhuma “música séria” contemporânea, de outro, desempenhando algum papel? Podemos incitar Moles a responder, aproveitando para isso a fundamentação proporcionada pela pesquisa de Jakobovits:
[...] a música erudita é, efetivamente, destinada ao ouvinte com cultura musical. [...] não existem pontes unindo as classes sociais, assim como não existe um caminho real na Matemática. O Kitsch constitui muito mais um fator de segregação do que de fusão social através do campo estético. (MOLES, 1975: 134)
O Kitsch tem na música popular sua proteção garantida, o que nos leva ao entendimento de que a “música séria” não desempenha um papel significativo no cenário cultural massivo porque é concebida para um público instruído, e do lado oposto, a grande massa não se sente devidamente incluída. Há nesse sentido uma controvérsia. Seria legítimo o compositor de “música séria” contemporânea criticar o atual estágio da cultura musical, e esperar que sua obra tenha uma boa receptividade?
Não há duvida que a cultura intransigente e consumista fez com que transparecessem graves problemas de formação musical por parte do público (e por que não dos músicos?). Por outro lado, uma nova geração de compositores têm colocado em voga novas formas de usar o conhecimento contemporâneo, concebendo uma música aparentemente embrionária, mas que já carrega consigo um impulso transformador; novas percepções excitadas apontam, quem sabe, para um novo paradigma estético-musical.
Mesmo que todos os fatores históricos discutidos até aqui nos levem a uma crítica do contemporâneo, devemos estar cônscios que as transformações nunca cessam, e que depois de um período de crise, decorre sempre o renascimento de um novo tempo, de um novo pensar. Esperamos que, olhando para trás possamos reencontrar o valor da música em nossas vidas – tendo evidentemente todo o cuidado de não ficarmos presos ao passado –.
Referências Bibliográficas
HARNONCOURT, Nikolaus. Compreensão da música e formação musical. In: O Discurso dos Sons. Ed. Jorge Zahar. 1998.
MOLES, Abraham. O Kitsch. São Paulo: Perspectiva, 1975.